Garotos chineses
jogam cartas em uma vila para migrantes do interior do país em Pequim, em 7 de
setembro. A desigualdade se alastra.
Em duas
manifestações diferentes realizadas nos últimos dias, o Fundo Monetário
Internacional (FMI) destacou que a crescente desigualdade social é um fator
desestabilizador para a coesão social e política dos países e também atrapalha
o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) das nações.
Uma das indicações
desta idéia pelo FMI está no texto Growth That Reaches Everyone: Facts,
Factors, Tools ("Crescimento que atinge a todos:
fatos, fatores e ferramentas", em tradução livre), publicado
no blog do fundo em 20 de setembro. O documento é assinado por Rupa
Duttagupta, vice-diretora do Departamento de Estudos Econômicos Mundiais do
FMI, Stefania Fabrizio, segunda no comando do Departamento de Estratégia,
Políticas Públicas e Revisão, e Davide Furceri e Sweta Saxena,
economistas seniores do fundo.
No texto, o
quarteto lembra que, nas últimas décadas, o crescimento da economia mundial
elevou os padrões de vida e criou inúmeras oportunidades de emprego, tirando
milhões da pobreza, mas destacam que a "desigualdade aumentou em diversas
economias avançadas e permanece teimosamente alta em muitas que ainda estão se
desenvolvendo". Isso é preocupante, lembram os economistas, pois
pesquisas deixam claro que a persistente falta de inclusão social "pode
afetar a coesão social e prejudicar a sustentabilidade do próprio
crescimento".
O estudo destaca
que a desigualdade salarial cresceu "fortemente" em muitos lugares e
que no mundo desenvolvido isso se deu entre os anos 1990 e a metade dos anos
2000. Nas economias emergentes, a desigualdade salarial caiu em muitos países,
mas ainda é muito alta. O Brasil é um exemplo evidente disso. Na segunda-feira
25, a ONG Oxfam Brasil mostrou que os seis brasileiros mais ricos detêm a
mesma fatia da renda nacional que os 100 milhões mais pobres.
Além da
desigualdade salarial, lembra o FMI, a falta de inclusão se manifesta por meio
de acesso desigual a empregos e serviços básicos, como educação e saúde; por
altas taxas de mortalidade em segmentos específicos da população (caso de jovens e negros no Brasil);
pela falta de acesso ao sistema bancário e financeiro; e pela desigualdade de
gênero, que "levou a diferenças persistentes em [níveis] de saúde,
educação e renda entre homens e mulheres em grandes partes do mundo". Este
também é o caso do Brasil, onde as mulheres trabalham em média 5 horas a
mais que os homens e recebem 76% do salário.
O FMI lembra
também que a tecnologia e a integração econômica trouxeram muitos benefícios a
diversas economias, como aumento de produtividade e redução de preços, o que
beneficiou os mais pobres, mas lembra que a tecnologia "aumentou a demanda
quase que exclusivamente por trabalho qualificado, enquanto o comércio em
algumas oportunidades deslocou os trabalhadores menos qualificados".
Os economistas
afirmam que a resposta a esses problemas não é parar reformas que aumentem a
produtividade e o crescimento, mas "focar em políticas que oferecem
oportunidades para todos".
Entre os exemplos
estão gastos em infraestrutura, como estradas, aeroportos, a malha energética e
educação; a ampliação de acesso a serviços financeiros, o que facilita o
consumo e o investimento; auxílio na busca por empregos; uma política fiscal
que garanta crescimento inclusivo, reduzindo as desigualdades educacionais e de
saúde entre diversos grupos, e que promova benefícios sociais, como
transferências de renda para proteger os mais vulneráveis. Este último caso
existe no Brasil, sob o nome de Bolsa Família.
Obstáculo para o crescimento
Cinco dias depois
da publicação do artigos dos economistas, Tao Zhang, vice-diretor-gerente
do FMI, destacou que a redução da classe média em economias
avançadas, como os Estados Unidos, em meio ao aumento
da desigualdade, está prejudicando o crescimento global. Ele fez as
afirmações à agência AFP.
A previsão do
fundo é que a economia mundial avance 3,5% em 2017, um patamar baixo em termos
históricos. Para os EUA, a previsão é de 2,1%, mas Zhang lembrou que mais da
metade das famílias norte-americanas têm rendimentos mais baixos do que tinham
no ano 2000. Essa desigualdade de renda, afirmou Zhang, está
pesando sobre o consumo global, reduzindo-o em cerca de 3,5% nos últimos 15
anos, disse ele. "Isso representa um importante obstáculo ao aumento
da demanda", afirmou. "Todos nós estamos conscientes das
ramificações sociais e políticas que acompanharam essas mudanças na distribuição
da renda familiar", afirmou.
Contraste: em frente ao centro financeiro de Manila, capital das Filipinas, uma área de pobreza extrema (Foto: Noel Celis / AFP) |
Assim como os
quatro economistas do fundo, Zhang pediu programas específicos de assistência
social, aumento da educação e formação profissional, salário mínimo mais
elevado, apoio à assistência à infância, bem como maior assistência
previdenciária aos pobres como formas de combater a desigualdade.
Mudança de postura?
O fato de o FMI
destacar o papel deletério da desigualdade é significativo pois a instituição
teve papel decisivo para desenhar as diretrizes da economia atual, como o foco
prioritário no crescimento e a integração comercial.
Ao lado do Banco
Mundial e do Tesouro dos EUA, o FMI é uma das instituições que compôs o chamado
consenso de Washington que impôs um receituário único a diversos países que
envolviam estabilização macroeconômica, abertura das economias ao comércio e
aos fluxos de investimento e a expansão das forças de mercado na economia
doméstica, por meio, por exemplo, de privatizações.
Este receituário,
como o próprio FMI reconhece agora, produziu desigualdade e instabilidade
política, um cenário para o qual diversos grupos políticos alertaram quando
essas políticas começaram a ser aplicadas e seus efeitos, sentidos. Mais
recentemente, muitos analistas colocam a crescente desigualdade como um dos
fatores para o fortalecimento de alternativas políticas populistas, como Donald
Trump nos Estados Unidos e o Brexit, no Reino Unido.
Em 2015, o FMI já
havia alertado para os danos que a desigualdade trazia, com a publicação do
documento Causas e consequências da desigualdade de renda em uma
perspectiva global, assinado por cinco economistas. No relatório, o
grupo contestava a ideia de que o
enriquecimento dos mais ricos contagiaria o resto da sociedade, a
chamada trickle down economics, base conceitual das políticas
neoliberais que tomaram o mundo a partir das eleições de Margaret Thatcher e
Ronald Reagan justamente por meio do FMI e do Banco Mundial.
No documento, os
economistas defendiam políticas de distribuição de renda para retomar
crescimento, como programas assistenciais e impostos sobre grandes fortunas.
Em 2016, o mesmo
FMI trouxe novamente a questão à tona, com a publicação do artigo Neoliberalism: Oversold?,
em sua revista trimestral Finance & Development. O
texto aborda especificamente os efeitos de duas políticas neoliberais, a
remoção das restrições ao movimento de capitais (liberalização das contas de
capital) e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e
o nível da dívida) e reconhece que seu receituário tem efeitos nocivos no
longo prazo, acentuando a desigualdade.
O fato de o FMI
reconhecer o desastre das políticas que ajudou a implantar não significa, no
entanto, que elas vão retroceder. Após a publicação do artigo Neoliberalism:
Oversold?, CartaCapital entrevistou o sociólogo
alemão Wolfgang Streeck, autor do
livro Tempo Comprado: A Crise Adiada do Capitalismo Democrático, no
qual discute as causas e efeitos da crise de 2008.
Streeck destacou
que o artigo era uma "expressão da impotência" do fundo diante da
crise econômica. "Não há nada ali que possa ser uma sugestão para
substituir o neoliberalismo como regime de acumulação de capital – e acumulação
de capital é do que se trata o capitalismo", afirmou. Para Streeck,
estamos em um mundo "no qual as velhas receitas não estão funcionando
mais, embora, ao mesmo tempo, não tenhamos novas receitas plausíveis ou
viáveis".
"O FMI sempre
insiste na idéia de que os países devem honrar suas obrigações com os credores
e não seria possível ser de outra maneira. Mas isso pode ser feito de duas formas:
cortando gastos com os cidadão (austeridade!) ou estimulando o crescimento
econômico", afirmou. "Na ausência de crescimento econômico, o FMI
sempre irá pregar o caminho da austeridade. E uma vez que ninguém sabe como
restaurar o crescimento econômico em condições socialmente aceitáveis, artigos
como este, que parecem fascinantes, não passarão de artigos de pesquisa",
disse.
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