Moïse pertencia à etnia Hema e chegou ao Brasil em 2011 fugindo de conflitos em seu país
O congolês Moïse Kabamgabe chegou ao Brasil em 2011 junto com seus três irmãos. Eles vieram em busca de segurança, em razão do conflito entre as etnias Hema e Lendu na República Democrática do Congo.
Mais de 10 anos depois, Moïse se tornou vítima da violência no Brasil. Em 24 de janeiro, o jovem foi espancado até a morte em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro (RJ).
Segundo relatos de familiares da vítima, o congolês foi agredido por cobrar duas diárias, que somavam R$ 200, de serviços prestados no estabelecimento.
"Espancar um rapaz dessa forma não é coisa de ser humano, essas pessoas não são seres humanos. Não sei se essas pessoas têm coração, se têm filhos, irmãos ou se sentem dor", desabafa um parente, que pediu para não ter a identidade divulgada por medo de represália.
"A gente chegou aqui e os brasileiros sempre foram pessoas boas. Mas, hoje, não sei mais", disse a mãe do rapaz, Ivana Lay, em relato ao jornal "O Globo" publicado nesta terça-feira (01/2).
A Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) apura o caso sob sigilo. Em breve comunicado à BBC News Brasil, informou que analisou câmeras de segurança instaladas no local em que o rapaz foi agredido e disse que está ouvindo testemunhas.
Na terça-feira, três homens foram presos. De acordo com o G1, eles devem responder por homicídio duplamente qualificado, impossibilidade de defesa e meio cruel.
Em entrevista ao programa SBT Rio, um dos presos afirmou que os agressores não queriam tirar a vida de ninguém e declarou que o rapaz não foi espancado por ser "negro ou de outro país". O suspeito argumentou que agiram para defender um homem que Moïse supostamente teria tentado agredir.
A defesa da família do congolês afirma que os suspeitos devem adotar uma versão na qual dizem que agiram em legítima defesa para tentar reduzir uma possível condenação.
A reportagem não conseguiu contato com as defesas dos suspeitos do crime até a atualização deste texto.
A busca por segurança
A família de Moïse pertence à etnia Hema. O conflito étnico com o povo Lendu já causou mortes violentas, desnutrição e outras inúmeras dificuldades para o Congo, o maior país da África subsaariana.
Conforme parentes do rapaz, o pai dele tinha envolvimento com a política do país e se preocupava com a segurança da família. Em razão disso, decidiu que os filhos precisavam sair do Congo.
Moïse e os irmãos conseguiram status de refugiados no Brasil. Quando chegaram por aqui, logo foram acolhidos pela comunidade congolesa e foram recebidos por familiares que haviam chegado anteriormente.
Os garotos foram matriculados em escolas públicas, começaram a aprender o idioma e logo se adaptaram à vida em solo brasileiro.
"Aqui, a gente tem muita solidariedade como congolês quando alguém chega e não conhece nada. A gente busca alguma forma para abrigar, acompanha a pessoa e ajudar na documentação até a pessoa conseguir fazer as coisas sozinha e trabalhar", diz o congolês Placide Ikuba, que chegou ao país em período próximo ao de Moïse e conhecia o rapaz.
Segundo o parente de Moïse que conversou com a BBC News Brasil, sob a condição de anonimato, a violência no Brasil sempre assustou, mas parecia algo distante.
"A gente já tinha visto crimes na televisão e muita barbaridade, mas a gente não acreditava que fosse acontecer algo assim na nossa família", desabafa o familiar.
Em 2014, a mãe do jovem congolês, Ivana Lay, também chegou ao Brasil. Ela e os quatro filhos acreditavam em um futuro melhor por aqui.
A morte do jovem
Imagem do Google Street View mostra quiosque em frente a praiaCRÉDITO - GOOGLE
Quiosque onde Moïse foi morto; segundo relatos, estabelecimento continuou funcionando normalmente depois
Na comunidade de congoleses, Moïse era considerado um jovem muito querido.
"Ele era um moleque que estava sempre com a gente, era muito cativo e muito querido na comunidade. Ele era um moleque muito legal, que gostava de estar sempre com os amigos", diz Nsuka Kaluba, ex-presidente da comunidade de congoleses no Rio de Janeiro.
O jovem fazia vários serviços informais para sobreviver, um deles era no quiosque. Segundo a mãe dele, o rapaz já havia trabalhado na barraca anteriormente e conhecia todos no local.
"Ele era trabalhador e muito honesto. Ganhava pouco, mas era dele. No final, chegava com parte do dinheiro e me dava para ajudar a pagar o aluguel. E reclamava, dizendo que ganhava menos que os colegas", disse ela em entrevista ao Globo.
No dia do crime, segundo familiares, Moïse falou para um amigo que iria pegar o dinheiro atrasado no quiosque.
De acordo com parentes do rapaz, ele passou a ser agredido logo que cobrou pelo serviço prestado em dias anteriores.
Um vídeo que mostra a agressão ao jovem foi divulgado pela imprensa nesta terça-feira. No registro é possível ver que a situação começou por volta das 22h25, quando um homem pega um pedaço de pau e Moïse pega uma cadeira. Pouco depois, outros dois homens chegam, jogam o rapaz no chão e ele começa a receber diversos tipos de agressão.
Na filmagem é possível ver o jovem levando socos, chutes e até golpes com pedaços de pau. Cerca de 10 minutos depois, os agressores amarram as mãos e os pés do rapaz com um fio. Em determinado momento, quando o rapaz está caído no chão, tentam reanimá-lo.
Segundo parentes do rapaz, ele só foi socorrido pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) cerca de 40 minutos depois, quando já estava morto.
A Polícia Militar informou, em nota à BBC News Brasil, que não foi acionada para atender o caso de agressão contra o jovem. Segundo a entidade, uma equipe passava pelo local quando avistou uma viatura do Samu e foi verificar. No local, o serviço médico já havia atestado a morte dele.
"Ele saiu de uma disputa de etnias e violência que não têm limites, e ninguém esperava que isso fosse acontecer no Brasil, que recebeu a família de braços abertos", diz o advogado Álvaro Quintão, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ).
Quintão, junto com a OAB-RJ, tem representado a família e apoiado nas questões jurídicas do caso.
"O que fizeram foi uma barbaridade. Espancaram de forma covarde até a morte", diz. "A gente vê no vídeo que não há nenhuma proporcionalidade na agressão, que mesmo depois de desacordado ele continuou apanhando. Não há nada que possa caracterizar legítima defesa ali", declara.
O advogado ressalta que os envolvidos podem ter a pena aumentada se for comprovado que o crime teve característica racista e xenofóbica.Pessoas na rua segurando cartazes
CRÉDITO - ARQUIVO PESSOAL
Legenda da foto: Parentes e amigos de Moïse Kabamgabe fizeram protesto na Barra da Tijuca pedindo Justiça
Segundo Quintão, não havia necessariamente, a princípio, relação entre o espancamento do rapaz e xenofobia ou racismo.
"Mas após o início das agressões, o fato de ele ser negro e não ser brasileiro, ser africano, fez com que as pessoas ignorassem aquele espancamento", declara.
"Havia pessoas assistindo aquilo e o quiosque continuou funcionando normalmente depois que ele morreu, como se nada tivesse acontecido. Aí temos a dose de racismo estrutural. Era apenas mais um corpo negro morto, uma situação banalizada pela sociedade", acrescenta.
Dias após o crime, a comunidade congolesa no Brasil lamentou a morte do jovem por meio de uma nota e disse que o caso não manifesta somente "o racismo estrutural na sociedade brasileira, mas claramente demonstra a xenofobia dentro das suas formas contra o estrangeiro".
No sábado (29/1), familiares e amigos protestaram contra a morte do jovem em frente ao quiosque. Eles cobraram que os responsáveis pelo crime sejam punidos. Nas redes sociais, milhares de pessoas passaram a compartilhar a imagem de Moïse pedindo que o caso não seja esquecido.
Por-Vinícius Lemos/BBC News Brasil em São
Paulo
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